Os efeitos jurídicos decorrentes da interpretação da norma.

domingo, 4 de setembro de 2011

ALGUNS ASPECTOS POLÊMICOS DA LEI DE CRIMES HEDIONDOS.


01) INAFIANÇABILIDADE E PROIBIÇÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA???

Prevê a Constituição Federal, no Artigo 5º, inciso XLIII que a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.

Regulando esse mandamento constitucional adveio a Lei nº 8.072/90, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, estabelecendo tratamento mais rígido para aqueles que cometessem esses crimes.

A redação original do Artigo 2º, II, da mencionada Lei previa que os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo eram insuscetíveis de FIANÇA e LIBERDADE PROVISÓRIA. Além da vedação da fiança (da forma como mandou o constituinte) também havia vedação da liberdade provisória.

A liberdade provisória é a medida cabível quando o criminoso é preso em flagrante, mas a manutenção da sua prisão é desnecessária, podendo ela ser deferida com ou sem prestação de garantia (fiança), nos termos do Art. 321 e seguintes do CPP. Normalmente, se não há justa causa para manutenção de prisão preventiva, concede-se a liberdade provisória.

Isso significa que o termo Liberdade Provisória é gênero, do qual são espécies liberdade provisória com fiança e liberdade provisória sem fiança (ausência dos requisitos da preventiva).

É com esse raciocínio que o Código de Processo Penal trata do assunto, nos Artigos 321 a 350, sob o título “Da liberdade provisória, COM OU SEM FIANÇA”. Com as recentes alterações incluídas pela Lei nº 12.403/2011 ao Código de Processo Penal ficou mais clara a existência de dois tipos de liberdade provisória: a concedida sem fiança e a que é concedida em função da ausência dos requisitos da prisão preventiva, conforme o Artigo 321:

Art. 321.  Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.

De fato, se não há necessidade de se manter o agente aprisionado, em razão da ausência dos requisitos ensejadores da decretação da prisão preventiva, não há razoabilidade em mantê-lo preso. Daí a necessidade da concessão da liberdade provisória por ausência dos requisitos da preventiva.

Foi com base nessa diferenciação entre liberdade provisória com e sem fiança que a doutrina sempre criticou o Artigo 2º, II, da Lei de Crimes Hediondos, que previa, além do que mandava o texto constitucional (impossibilidade de fiança), que também os delitos hediondos seriam insuscetíveis de liberdade provisória.

Como a Constituição Federal CF – Art. 5º, XLIII, vedou a concessão de fiança, mas não a de liberdade provisória sem prestação de garantia, passou-se a discutir, na doutrina e também jurisprudência, se era compatível com o texto constitucional o afastamento da liberdade provisória (sem fiança).

Com a declaração pelo Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade do Artigo 21 do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) na ADIN 3137/DF, que continha dispositivo semelhante ao comentado, veio o legislador infraconstitucional antecipar-se à nova decisão judicial sobre a matéria, agora relacionado à Lei de Crimes Hediondos, e revogou parcialmente o Art. 2º, II, da mencionada lei.

Foi a Lei nº 11.464, de 28/03/2007, que deu nova redação ao dispositivo que agora prevê apenas a proibição de concessão de fiança. Não mais menciona impossibilidade de liberdade provisória.

Percebe-se que o legislador infraconstitucional também diferencia a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança. Desde a redação original do dispositivo já havia os dois termos de forma expressa.

Um termo não é semelhante ao outro, isto é, fiança e liberdade provisória são dois institutos diferentes, apesar de ser possível a concessão de liberdade provisória com fiança.

E com a alteração do Artigo 2º, II, pela Lei nº 11.464/07 ficou evidenciado que o tratamento do legislador também é no sentido de que vedar-se apenas a concessão de fiança, mas não a de liberdade provisória. Se a intenção do legislador fosse impossibilitar qualquer espécie de liberdade provisória (com ou sem fiança) retiraria o legislador, em vez do termo “liberdade provisória”, o termo “fiança”, contidos na redação original do Artigo 2º. Assim a redação do dispositivo vedaria apenas a liberdade provisória.

Poderia muito bem deixar expresso que os crimes hediondos seriam insuscetíveis de liberdade provisória, o que abarcaria inclusive a concessão de fiança. Mas não, resta vedado, hoje, de forma expressa, apenas a concessão de fiança, da forma como determina a Constituição.

Ocorre que o STF, mesmo após a edição da Lei nº 11.464/07, vem decidindo em vários casos que a proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5°, inc. XLIII).

Para a corte suprema a proibição da liberdade provisória decorre da vedação da fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, constituía redundância. Mera alteração textual, sem modificação da norma proibitiva de concessão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, que continua vedada aos presos em flagrante por quaisquer daqueles delitos – (HC 103715 / RJ; HC 103399 / SP; HC 99333 / SP entre outros).

Data máxima vênia, não é esse o entendimento que se deve dar ao dispositivo constitucional e à atual redação do Artigo 2º, II. Como dito, o próprio CPP distingue os dois tipos de liberdade provisória.

Não se pode considerar os dois termos como redundantes, já que o próprio Código de Processo Penal trata no Artigo 321 da concessão da liberdade provisória sem sequer mencionar a fiança. Concessão de fiança é um minus, enquanto a liberdade provisória é um plus.

E se fosse intenção do constituinte vedar a concessão de liberdade provisória teria utilizado, no Artigo 5º da Constituição, em vez da expressão “inafiançabilidade” o termo “liberdade provisória”.

Não há sentido admitir-se a feitura de uma lei, com todo o processo legislativo e consequências daí advindas, para se alterar um dispositivo apenas para acabar com “redundâncias”. Se há modificação de um texto legal essa mudança tem a sua finalidade e o seu sentido, isto é, tem de haver alguma alteração significante no mundo jurídico. Não há dispositivo legal inútil.

Dois questionamentos ajudam a entender a celeuma:

- Qual é a finalidade da vedação de concessão de fiança aos crimes hediondos? É evitar que aquelas pessoas que cometeram crimes bárbaros comprem a sua liberdade em razão de suas condições financeiras elevadas. Grandes criminosos, por exemplo, que possuem riquezas obtidas ilicitamente espalhadas por toda a parte, ao cometerem, verbi gratia, um homicídio qualificado, comprariam a sua liberdade pagando o preço que fosse.

- Por outro lado, qual a finalidade da concessão da liberdade provisória sem fiança, isto é, por que a lei admitiria a concessão de liberdade por ausência dos requisitos da preventiva? Exatamente porque, se não há motivos plausíveis que justifiquem a manutenção da prisão, não há porque manter em cárcere o indivíduo. Ora, considere-se uma pessoa que nunca tenha cometido qualquer delito e tenha levado toda a sua vida pautada por critério éticos e corretos, mas certo dia, por qualquer circunstância que seja (as vezes um “momento de fúria”), comete um homicídio por motivo fútil de forma tentada. Arrependido, não haverá razão para mantê-lo em prisão, não havendo quaisquer outros motivos que ensejem a continuidade da cautelar preventiva. Isso seria já considerar como culpado quem ainda não teve sua sentença condenatória transitada em julgado, ferindo de morte o postulado constitucional da presunção de inocência.

Pois bem, o texto constitucional impõe um dever ao legislador ordinário, dizendo que este deverá considerar INAFIANÇÁVEL os chamados crimes hediondos. Não disse para considerar insuscetíveis de liberdade provisória.

Ademais, trata-se de uma regra restritiva da liberdade individual que excepciona a regra geral, que é a possibilidade de concessão de liberdade provisória. E é método / princípio de hermenêutica que diz que toda regra restritiva da regra geral deve ser interpretada também de forma restritiva, isto é, não se é dado interpretar de forma ampliativa. Assim, não é dado ao intérprete da norma constitucional, restritiva que é, atribuir-lhe novos significados para abarcar aquilo que não está previsto no texto expresso.

Com a redação do atual Artigo 323 do Código de Processo Penal, dada pela Lei nº 12.403/2011, também ficou notório que veda-se apenas fiança aos crimes hediondos e equiparados. Se o legislador quisesse vedar a liberdade provisória teria insculpido no dispositivo a expressão “liberdade provisória”, não somente “fiança”.

O Art. 5º, XLIII, CF/88 não tem, nem implicitamente, vedação da liberdade provisória nos crimes hediondos. Assim, com a retirada da impossibilidade de concessão de liberdade provisória na lei dos crimes hediondos, desapareceu de vez qualquer empecilho para sua concessão àqueles que não preenchem os requisitos da segregação cautelar.

E como há idêntica previsão na Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas – Art. 44 – proibição de liberdade provisória), com a alteração da Lei nº 11.464/07, também deve ser cabível a liberdade provisória a tais crimes, face aos princípios da Posteridade (lei posterior revoga a anterior) e Proporcionalidade (não seria razoável admitir liberdade provisória aos demais crimes hediondos e não aos crimes da lei de drogas).

Concluo o raciocínio dizendo, mais uma vez, com a devida vênia, contrariamente ao entendimento que vem prevalecendo na Suprema Corte, que não há razão para se vedar liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados. Preenchidos os requisitos autorizadores (não configuração dos casos da preventiva), tem o segregado direito à liberdade provisória sem fiança.



02) REGIME INICIALMENTE FECHADO – INCONSTITUCIONALIDADE???

A redação original da Lei nº 8.072/90 também previa, no Artigo 2º, § 1º, que as penas da Lei de Crimes Hediondos deveriam ser cumpridas em regime INTEGRALMENTE fechado.

Com as várias criticas doutrinárias em razão de tal tratamento, a mesma Lei nº 11.464/07 alterou o dispositivo que agora prevê que o regime de cumprimento de pena será INICIALMENTE FECHADO. Eis a atual redação dos §§ 1º e 2º do Artigo 2º:

§ 1o A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.

§ 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Atualmente não há proibição de progressão de regime prisional, mesmo que se trate de condenado por crime hediondo.

Tal alteração se deu porque a proibição indiscriminada de progressão de regime de cumprimento de pena, seja qual crime for, e sem se atentar às peculiaridades de cada indivíduo, viola o princípio da constitucional da individualização da pena, inscrito no Artigo 5º, XLVI. Ora, se para cada indivíduo deve ser aplicada a pena adequada à sua individualidade, e se a própria Constituição Federal não nega o direito de progressão de regimes aos apenados pelos crimes hediondos, não havia razão para que a segregação fosse feita integralmente em regime fechado.

Ocorre que foi exatamente com esse entendimento que o Supremo Tribunal Federal, antes da edição da Lei nº 11.464/07, já tinha declarado a inconstitucionalidade da fixação do regime integralmente fechado. Com a declaração dessa inconstitucionalidade, os presos por crimes hediondos pleiteavam a progressão de regime com o preenchimento do requisito temporal estabelecido na Lei de Execução Penal, qual seja, o cumprimento de 1/6 da pena.

Com a atual redação do § 2º o requisito temporal passou para o cumprimento de 2/5, se primário, e 3/5, se reincidente. Essa situação é evidentemente mais gravosa, razão pela qual não pode retroagir.

Assim, PASSARAM A EXISTIR DUAS SITUAÇÕES DIVERSAS PARA A PROGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL AOS APENADOS POR CRIMES HEDIONDO: a) para o condenado por crime hediondo praticado após a edição da Lei nº 11.464/2007, que deve cumprir a quantidade de pena prevista no artigo em comento (2/5 ou 3/5); b) e para os demais apenados, permanece a exigência de cumprimento de 1/6 da pena, consoante Artigo 112 LEP. Assim é a jurisprudência pacífica:

EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. INEXISTÊNCIA DOS VÍCIOS RELACIONADOS NO ART. 535 DO CPC. PRETENSÃO DE CARÁTER INFRINGENTE. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA INTEGRALMENTE FECHADO. INCONSTITUCIONALIDADE. APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEI 11.464/2007. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. A declaração de inconstitucionalidade do § 2º do art. 2º da Lei 8.072/1990, no bojo do HC 82.959, da relatoria do ministro Marco Aurélio, produz efeitos quanto às penas ainda não extintas. 2. A Lei 11.464/2007 é de ser aplicada apenas aos fatos praticados após a sua vigência. Quanto aos crimes hediondos cometidos antes da entrada em vigor do mencionado diploma legal, a progressão de regime está condicionada ao preenchimento dos requisitos do art. 112 da Lei de Execuções Penais. Precedentes. 3. Embargos acolhidos com o fim específico de afastar o óbice à progressão de regime penitenciário e determinar a observância dos requisitos do art. 112 da LEP. (AI 757480 AgR-ED, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Primeira Turma, julgado em 10/05/2011, DJe-115 DIVULG 15-06-2011 PUBLIC 16-06-2011 EMENT VOL-02545-01 PP-00161).

Acontece que, mesmo com a modificação do regime de integralmente para inicialmente fechado, ainda assim reside dúvida quanto à constitucionalidade desse dispositivo, já que não se estaria aplicando uma pena adequada ao condenado e às circunstâncias judiciais que rodeiam o delito. Se a todos for aplicada a regra de regime inicialmente fechado, certamente haverá casos de injustiça, em que a pena não vai ser aplicada de forma adequada ao crime e ao criminoso.

Se a previsão de prazos diferenciados para a progressão de regime no caso crimes hediondos se afigura plausível e benquista, o mesmo não se pode dizer da previsão indiscriminada de que o regime será inicialmente fechado.

Assim vem decidindo recentemente o Superior Tribunal de Justiça, para quem, mesmo com a modificação da redação da Lei nº 8.072/90 pela Lei nº 11.464/07, ainda persistem violação ao princípio da individualização da pena, da proporcionalidade e do corolário da busca do justo. Eis o entendimento da Corte Superior:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. LEI Nº 11.343/06. REGIME PRISIONAL. POSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE REGIME SEMIABERTO. SUBSTITUIÇÃO DE PENA CORPORAL POR MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. MEDIDA QUE NÃO SE MOSTRA SOCIALMENTE RECOMENDÁVEL.

1. Com a edição da Lei nº 11.464/07, que modificou a redação da Lei nº 8.072/90, derrogando a vedação à progressão de regime a crimes hediondos ou equiparados, persistiu-se na ofensa ao princípio da individualização da pena, quando se afirmou que a execução deve se iniciar no regime mais gravoso.

2. A Lei não andou em harmonia com o princípio da proporcionalidade, corolário da busca do justo. Isso porque a imposição do regime fechado, inclusive a condenados a penas ínfimas, primários e de bons antecedentes, entra em rota de colisão com a Constituição e com a evolução do Direito Penal. Precedentes.

3. No caso, apesar de o paciente ser primário e não ostentar antecedentes criminais, dada a quantidade e a natureza do entorpecente - foram apreendidas 40 (quarenta) pedras de crack, no primeiro fato delituoso, e 15 (quinze) pedras de crack, no segundo fato -, mostra-se razoável o estabelecimento do regime inicial semiaberto para o início da expiação.

4. Pelas mesmas balizas, não se apresenta socialmente recomendável o deferimento da substituição da sanção corporal por restritivas de direitos.

5. Ordem parcialmente concedida, tão só para estabelecer o regime semiaberto para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade aplicada ao paciente. (HC 207.502/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2011, DJe 17/08/2011).

Com acerto vem decidindo o STJ. Não se pode simplesmente estabelecer que o regime será inicialmente fechado para todos os criminosos. Deve o juiz considerar as circunstâncias judiciais, a quantidade e aplicação de pena e demais caracteres que circundam o fato, para aí sim estabelecer o regime que melhor se adequa ao fato e ao criminoso. Pode e deve considerar a inconstitucionalidade do § 1º, do Artigo 2º da Lei de Crimes Hediondos, fixando o regime inicial que melhor se adaptar ao caso.



REFERÊNCIAS:

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação penal especial, volume 4. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, William Terra de. Lei de Drogas Comentada: Artigo por artigo. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Bahia: Juspodivm, 2010.

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