Os efeitos jurídicos decorrentes da interpretação da norma.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

EXECUÇÃO PROVISÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA: POSSIBILIDADE?


A execução provisória está regulamentada pelo Código de Processo Civil no Artigo 475-O. Diz-se provisória porque o título que fundamenta a execução (judicial ou extrajudicial), está sujeito a ser desfeito, em razão de ainda haver discussão judicial a seu respeito.
Característica marcante da execução provisória é o fato de que “o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos” (Art. 475-O, III).
Há dois conceitos de execução provisória, que podem ser extraídos do diploma processualista, caso se trate execução de título judicial ou execução de título extrajudicial.

1. Execução Provisória de Título Judicial.
Primeiramente, temos o Art. 475-I, § 1º, CPC:
§ 1o É definitiva a execução da sentença transitada em julgado e provisória quando se tratar de sentença impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005).
Percebe-se que a execução de título judicial será provisória quando ainda pendente recurso interposto contra a decisão prolatada. A execução é provisória porque ainda há possibilidade da sentença vir a ser “derrubada”, caso provido o recurso contra ela interposto.
Assim, por exemplo, prolatada uma sentença em um processo de conhecimento e interposta uma apelação pela parte que sucumbiu, apelação essa não dotada de efeito suspensivo, pode o vencedor na demanda proceder à execução do julgado, mas essa execução será provisória, com as regras do Artigo 475-O do CPC.
A principal característica dessa execução provisória de título judicial é a ausência de trânsito em julgado da decisão exequenda. Isso porque, se ela transitou em julgado, a execução será definitiva.
Por outro lado, não caberá execução se contra a decisão foi interposto um recurso com efeito suspensivo, pois, se foi atribuído efeito suspensivo ao recurso, nenhum efeito produzirá o julgado, pelo menos até o julgamento da impugnação.

2. Execução Provisória de Título Extrajudicial.
A execução fundada em título extrajudicial, em princípio, é definitiva. Toda execução de título extrajudicial começa definitiva. Tal assertiva é de simples entendimento, pois não há como se imaginar que um título extrajudicial seja provisório.
Todavia, segundo o Artigo 587 do Código de Processo Civil, com redação alterada no ano de 2006 pela Lei nº 11382/2006, há possibilidade de se falar em execução provisória de título executivo extrajudicial quando ainda em trâmite sentença de improcedência dos embargos do executado, quando recebidos com efeito suspensivo:
Art. 587. É definitiva a execução fundada em título extrajudicial; é provisória enquanto pendente apelação da sentença de improcedência dos embargos do executado, quando recebidos com efeito suspensivo (art. 739). (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
Em apertada síntese, para ser provisória a execução de título extrajudicial deve preencher os seguintes requisitos: (1) O executado tem que ingressar com embargos à execução; (2) O juiz vai ter que conceder efeito suspensivo aos embargos (não é mais ope legis: é ope judicis: depende do reconhecimento de requisitos que serão analisados pelo juiz – não é todo embargos à execução que tem efeito suspensivo – requisitos do Artigo 739-A, § 1º, CPC); (3) Que nos embargos seja proferida uma sentença de improcedência: o embargante perdeu os embargos. (4) Apelação do embargante-executado contra essa sentença. Durante o trâmite dessa apelação a execução seguirá de forma provisória.
Cabe ressaltar que parte da doutrina critica essa hipótese de execução de título extrajudicial, pois que estaria dando tratamento desfavorável ao exequente que tem maiores motivos para receber tratamento favorável.
Isso porque, em uma execução que era definitiva e passou a ser provisória, o exequente tem a seu favor o título executivo e a sentença de improcedência dos embargos: e o executado, por outro lado, tem a seu favor apenas as suas alegações recursais da apelação. Essa apelação pode ser provida, mas o exequente tem, segundo a doutrina, muito mais motivos para ser tutelado do que o executado.
Todavia, não cabe aqui entrar nessa seara, já que o objetivo do trabalho é analisar a possibilidade de execução provisória contra a Fazenda Pública.

3. Execução provisória contra a Fazenda Pública.
3.1. No tocante às obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, a execução contra a Fazenda Pública não tem qualquer especialidade. Executa a Fazenda nessas obrigações como se executa qualquer devedor. A execução provisória vai ser comum: executa provisoriamente a Fazenda nessas obrigações do mesmo jeito que executa provisoriamente o particular.

3.2. Já no que se refere às obrigações de pagar quantia há algumas especialidades: tem o problema da impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens públicos; o Artigo 100 da CF prevê, no § 1º, o sistema da execução por precatórios; e no § 3º o sistema da execução pelo Requisição de Pequeno Valor – RPV:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.
Significa dizer que para expedir o precatório precisa do trânsito em julgado. O mesmo ocorre com o RPV. Se as duas formas de execução de pagar quantia contra a Fazenda Pública exigem o trânsito em julgado, teremos sempre uma execução definitiva. Antes disso não tem meios para executar a Fazenda. Constitucionalmente a obrigação de pagar a Fazenda depende do trânsito em julgado. Também não cabe execução provisória durante o trâmite do reexame necessário, pois o reexame necessário suspende os efeitos da sentença.
Foi a partir da edição da EC 30/2000 que não mais se afigura possível a execução provisória contra a Fazenda Pública. A razão dessa regra está na circunstância de que, uma vez inscrito o correlato precatório, o crédito passa a integrar o orçamento respectivo, devendo ter um única destinação, qual seja, o efetivo pagamento à parte favorecida.
Daí a EC 30 exigir o prévio trânsito em julgado, com vistas, inclusive, a resguardar o interesse público no pagamento de verbas orçamentárias, evitando-se o desvio despropositado de destinações mais úteis e vantajosas à consecução de finalidades igualmente públicas.
Em outras palavras, não atende o interesse público a destinação de verba para pagamento de precatório inscrito provisoriamente, tornando indisponível um valor que poderia ter outra destinação, já que é incerto que realmente será pago ao credor, em vista da possível modificação do status quo, decorrente de eventual provimento de algum recurso interposto ou, até mesmo, de modificação da sentença no reexame necessário.”
É o teor do § 5º do Art. 100, CF:
§ 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.
A Lei de Responsabilidade Fiscal impõe severas penas ao ente público que não concretizar o dispêndio da quantia inscrita – Art. 30, § 7º:
§ 7o Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites.
Inscrito o crédito, deverá ser efetuado o pagamento correspondente, sob pena de ensejar ao ente federativo, que ultrapasse os limites fixados para a dívida, sérias restrições, a exemplo da proibição de operações de crédito, com limitações de empenho. Em havendo pagamento, não raras são as hipóteses de irreversibilidade do levantamento do dinheiro pelo particular, sobrevindo acórdão que anule ou reforme a sentença provisoriamente executada.
É exatamente por isso que não se possibilita a inscrição provisória do crédito constituído contra a Fazenda Pública. Na verdade, são aspectos materiais – de Direito Público – que impedem a inscrição, não vindo a pelo cogitar-se da incidência das regras encartadas no diploma processual civil. Até porque, segundo a tendência moderna do processo civil, se deve considerar sua aplicação como um instrumento de realização do direito material, utilizando-se de tutelas diferenciadas, a depender do direito material aplicado. E, como as regras do direito material impedem a inscrição provisória, não há como se falar em execução provisória na espécie, muito embora haja sua previsão no CPC.”
O STJ assim já decidiu:
STJ AGRMC 618: PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ESPECIAL. EFEITOS SOBRE A EXECUÇÃO. PROVISORIEDADE. EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. A execução de decisão pendente de julgamento do recurso especial é provisória, o que impossibilita a expedição de precatório, seja originário ou complementar. Precatório é ordem de pagamento de verba pública, cuja emissão só é possível se o débito for líquido e certo, circunstâncias inexistentes enquanto não se concretizou o trânsito em julgado da decisão. Agravo regimental improvido. (AgRg na MC 618/SP, Rel. MIN. PEÇANHA MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/11/1998, DJ 28/06/1999, p. 74).
STJ RESP 447406: PROCESSO CIVIL - EXECUÇÃO DE SENTENÇA - FAZENDA PÚBLICA - ARTS. 730 E 731 DO CPC - ART. 100 § 1º DA CF/88 COM A REDAÇÃO DADA PELA EC 30/00. 1. A EC 30/00, ao inserir no § 1º do art. 100 da CF/88 a obrigação de só ser inserido no orçamento o pagamento de débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, extinguiu a possibilidade de execução provisória. 2. Releitura dos arts. 730 e 731 do CPC, para não se admitir, contra a Fazenda Pública, execução provisória. 3. Recurso especial conhecido e provido.
Também não há que se falar em execução provisória nas hipóteses de dispensa do precatório, previstas no Art. 100, § 3º, da CF, pois nessas hipóteses o que há é apenas dispensa de expedição do precatório e não do trânsito em julgado da decisão. Daí que a execução das obrigações definidas em lei como de pequeno valor também depende do prévio trânsito em julgado da decisão condenatória.
Todavia, doutrinadores trabalham com a possibilidade de se ajuizar uma execução provisória contra a Fazenda Pública, procedendo-se com a liquidação da sentença e citação do ente público para que ofereça embargos. Mas encerrado o procedimento da execução, deve-se aguardar a finalização dos embargos, já que só a partir do trânsito em julgado é que poderá haver a expedição de precatório.
Por essa razão é que alguns autores admitem a possibilidade de execução provisória contra a Fazenda Pública apenas no que se refere ao processamento da demanda executiva. A expedição do precatório é que ficaria dependendo do trânsito em julgado da sentença proferida no processo de conhecimento. A finalidade da execução provisória, aqui, seria tão somente a de adiantar o processamento da execução contra a Fazenda Pública, eliminando uma etapa futura.
Parece razoável esse entendimento, se analisarmos sob a ótica da celeridade, razoável duração do processo e razoabilidade, já que se estaria adiantando um procedimento futuro.
Por outro lado, parece que tal entendimento resta indevido sob a análise da possibilidade de provimento do recurso interposto pela Fazenda Pública, o que ocasionaria de todo inútil a atividade jurisdicional realizada. E se estamos a falar de Fazenda Pública como executada, penso que mais razoável seria esperar a consolidação do título para após iniciar o procedimento executivo, pois que o risco de não recebimento é mínimo, em que pese a burocracia dos precatórios. Tem-se também o fato da supremacia do interesse público, inerente à atividade administrativa exercida pela Fazenda Pública. Assim, entendo por não cabível a execução provisória contar a Fazenda Pública, em que pese o STJ já ter decidido de modo contrário.
Caso, porém, a execução provisória tenha sido proposta antes da EC 30/2000, não incide o óbice constitucional, viabilizando-se o seu processamento.
STJ MC 6489: PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. AJUIZAMENTO ANTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL N. 30/2000. POSSIBILIDADE. 1. A Emenda Constitucional n. 30 deu nova redação ao §1º do art. 100 da Constituição para estabelecer, como pressuposto da expedição de precatório ou da requisição do pagamento de débito de pequeno valor de responsabilidade da Fazenda Pública, o trânsito em julgado da respectiva sentença. 2. Há de se entender que, após a Emenda 30, limitou-se o âmbito dos atos executivos, mas não foi inteiramente extinta a execução provisória. Nada impede que se promova, na pendência de recurso com efeito apenas devolutivo, a liquidação da sentença, e que a execução (provisória) seja processada até a fase dos embargos (CPC, art. 730, primeira parte) ficando suspensa, daí em diante, até o trânsito em julgado do título executivo, se os embargos não forem opostos, ou forem rejeitados. 3. Em relação às execuções provisórias iniciadas antes da edição da Emenda 30, não há a exigência do trânsito em julgado como condição para expedição de precatório. Precedentes do STF e do STJ.
Lembrando que essas considerações aplicam-se somente à execução por quantia certa proposta contra a Fazenda Pública, porquanto é nesse tipo de execução que se adota a sistemática do precatório. Em se tratando de outro tipo de execução que não seja destinado ao pagamento de quantia em dinheiro, admite-se livremente a execução provisória.

REFERÊNCIAS.
A Fazenda Pública em Juízo. Leonardo José Carneiro Cunha – 8ª edição.
Curso de Direito Processual Civil. Fredie Didier Júnior. Vol. I. 11ª edição.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Princípio da boa-fé objetiva é consagrado pelo STJ em todas as áreas do direito

"Um dos princípios fundamentais do direito privado é o da boa-fé objetiva, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas relações obrigacionais. No entanto, a boa-fé não se esgota nesse campo do direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.

“Reconhecer a boa-fé não é tarefa fácil”, resume o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Humberto Martins. “Para concluir se o sujeito estava ou não de boa-fé, torna-se necessário analisar se o seu comportamento foi leal, ético, ou se havia justificativa amparada no direito”, completa o magistrado.

Mesmo antes de constar expressamente na legislação brasileira, o princípio da boa-fé objetiva já vinha sendo utilizado amplamente pela jurisprudência, inclusive do STJ, para solução de casos em diversos ramos do direito.

A partir do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, a boa-fé foi consagrada no sistema de direito privado brasileiro como um dos princípios fundamentais das relações de consumo e como cláusula geral para controle das cláusulas abusivas.

No Código Civil de 2002 (CC/02), o princípio da boa-fé está expressamente contemplado. O ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, presidente da Terceira Turma, explica que “a boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta social ou um padrão ético de comportamento, que impõe, concretamente, a todo cidadão que, nas suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade”.

Ele alerta que não se deve confundi-la com a boa-fé subjetiva, que é o estado de consciência ou a crença do sujeito de estar agindo em conformidade com as normas do ordenamento jurídico.

Contradição
Ao julgar um recurso especial no ano passado (REsp 1.192.678), a Terceira Turma decidiu que a assinatura irregular escaneada em uma nota promissória, aposta pelo próprio emitente, constitui “vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa”. O emitente sustentava que, para a validade do título, a assinatura deveria ser de próprio punho, conforme o que determina a legislação.

Por maioria, a Turma, seguindo o voto do ministro Sanseverino, aplicou o entendimento segundo o qual “a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé”. É o chamado venire contra factum proprium (exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior do exercente).

No caso, o próprio devedor confessou ter lançado a assinatura viciada na nota promissória. Por isso, a Turma também invocou a fórmula tu quoque, de modo a impedir que o emitente tivesse êxito mesmo agindo contra a lei e invocando-a depois em seu benefício (aquele que infringiu uma regra de conduta não pode postular que se recrimine em outrem o mesmo comportamento).

Seguro de vida

O STJ já tem jurisprudência firmada no sentido de que a seguradora não pode extinguir unilateralmente contrato renovado por vários anos. Num dos casos julgados na Terceira Turma em 2011 (REsp 1.105.483), os ministros entenderam que a iniciativa ofende o princípio da boa-fé. A empresa havia proposto à consumidora, que tinha o seguro de vida havia mais de 30 anos, termos mais onerosos para a nova apólice.

Em seu voto, o ministro Massami Uyeda, hoje aposentado, concluiu que a pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do contrato, não renovando o ajuste anterior nas mesmas bases, ofendia os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que devem orientar a interpretação dos contratos que regulam as relações de consumo.

O julgamento foi ao encontro de precedente da Segunda Seção (REsp 1.073.595), relatado pela ministra Nancy Andrighi, em que os ministros definiram que, se o consumidor contratou ainda jovem o seguro de vida oferecido pela seguradora e o vínculo vem se renovando ano a ano, o segurado tem o direito de se manter dentro dos parâmetros estabelecidos, sob o risco de violação ao princípio da boa-fé objetiva.

Neste caso, a Seção estabeleceu que os aumentos necessários para o reequilíbrio da carteira têm de ser estabelecidos de maneira suave e gradual, mediante um cronograma, do qual o segurado tem de ser cientificado previamente.

Suicídio

Em 2011, a Segunda Seção também definiu que, em caso de suicídio cometido durante os dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, período de carência, a seguradora só estará isenta do pagamento se comprovar que o ato foi premeditado (Ag 1.244.022).

De acordo com a tese vencedora, apresentada pelo ministro Luis Felipe Salomão, o novo Código Civil presume em regra a boa-fé, de forma que a má-fé é que deve sempre ser comprovada, ônus que cabe à seguradora. No caso analisado, o contrato de seguro de vida foi firmado menos de dois anos antes do suicídio do segurado, mas não ficou provado que ele assinara o contrato já com a intenção de se matar e deixar a indenização para os beneficiários.

Plano de saúde

Em outubro do ano passado, a Terceira Turma apontou ofensa ao princípio da boa-fé objetiva quando o plano de saúde reajusta mensalidades em razão da morte do cônjuge titular. No caso, a viúva era pessoa de 77 anos e estava vinculada à seguradora como dependente do marido fazia mais de 25 anos (AREsp 109.387).

A seguradora apresentou novo contrato, sob novas condições e novo preço, considerado exorbitante pela idosa. A sentença, que foi restabelecida pelo STJ, considerou “evidente” que o comportamento da seguradora feriu o CDC e o postulado da boa-fé objetiva, “que impõe aos contratantes, desde o aperfeiçoamento do ajuste até sua execução, um comportamento de lealdade recíproca, de modo a que cada um deles contribua efetivamente para o atendimento das legítimas expectativas do outro, sem causar lesão ou impingir desvantagem excessiva”.

Em precedente (Ag 1.378.703), a Terceira Turma já havia se posicionado no mesmo sentido. Na ocasião, a ministra Nancy Andrighi afirmou que, se uma pessoa contribui para um seguro-saúde por longo tempo, durante toda a sua juventude, colaborando sempre para o equilíbrio da carteira, não é razoável, do ponto de vista jurídico, social e moral, que em idade avançada ela seja tratada como novo consumidor. “Tal postura é flagrantemente violadora do princípio da boa-fé objetiva, em seu sentido de proteção à confiança”, afirmou.

Defeito de fabricação

No ano passado, a Quarta Turma definiu que, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável (no caso, máquinas agrícolas) com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar defeito de adequação (artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor), evidencia quebra da boa-fé objetiva que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum (REsp 984.106).

“Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma
legítima e razoável, fosse mais longo”, concluiu o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso.

Bem de família em garantia

Contraria a boa-fé das relações negociais o livre oferecimento de imóvel, bem de família, como garantia hipotecária. Esta é a jurisprudência do STJ. Num dos precedentes, analisado em 2010, a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, entendeu que o ato equivalia à entrega de uma garantia que o devedor, desde o início, sabe ser inexequível, esvaziando-a por completo (REsp 1.141.732).

Por isso, a Terceira Turma decidiu que o imóvel deve ser descaracterizado como bem de família e deve ser sujeitado à penhora para satisfação da dívida afiançada. No caso, um casal figurava como fiador em contrato de compra e venda de uma papelaria adquirida pelo filho. Os pais garantiram a dívida com a hipoteca do único imóvel que possuíam e que lhes servia de residência.

Comportamento sinuoso
O princípio da boa-fé objetiva já foi aplicado diversas vezes no STJ no âmbito processual penal. Ao julgar um habeas corpus (HC 143.414) em dezembro passado, a Sexta Turma não reconheceu a ocorrência de nulidade decorrente da utilização de prova emprestada num caso de condenação por tráfico de drogas. Isso porque a própria defesa do réu concordou com o seu aproveitamento em momento anterior.

A relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, lembrou que a relação processual é pautada pelo princípio da boa-fé objetiva e invocou a proibição de comportamentos contraditórios. “Tendo em vista o primado em foco, por meio do qual à ordem jurídica repugna a ideia de comportamentos contraditórios, tendo em vista a anuência fornecida pela defesa técnica, seria inadequado, num plano mesmo de eticidade processual, a declaração da nulidade”, concluiu a ministra.

Em outro caso (HC 206.706), seguindo voto do ministro Og Fernandes, a Sexta Turma reconheceu haver comportamento contraditório do réu que solicitou com insistência um encontro com o juiz e, após ser atendido, fora das dependências do foro, alegou suspeição do magistrado em razão dessa reunião.

Mitigar o prejuízo

Outro subprincípio da boa-fé objetiva foi invocado pela Sexta Turma para negar um habeas corpus (HC 137.549) – o chamado dever de mitigar a perda (duty to mitigate the loss). No caso, o réu foi condenado a prestar serviços à comunidade, mas não compareceu ao juízo para dar início ao cumprimento, porque não foi intimado em razão de o endereço informado no boletim de ocorrência estar incorreto.

O juízo de execuções ainda tentou a intimação em endereço constante na Receita Federal e na Justiça Eleitoral, sem sucesso. Por isso, a pena foi convertida em privativa de liberdade. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, ao analisar a questão, invocou a boa-fé objetiva. Para ela, a defensoria pública deveria ter informado ao juízo de primeiro grau o endereço correto do condenado.

“A bem do dever anexo de colaboração, que deve empolgar a lealdade entre as partes no processo, cumpriria ao paciente e sua defesa informar ao juízo o endereço, para que a execução pudesse ter o andamento regular, não se perdendo em inúteis diligências para a sua localização”, afirmou a magistrada.

Boa-fé da administração

O princípio da boa-fé permeia a Constituição e está expresso em várias leis regedoras das atividades administrativas, como a Lei de Licitação, Concessões e Permissões de Serviço Público e a do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos.

A doutora em direito administrativo Raquel Urbano de Carvalho alerta que, se é certo que se exige boa-fé do cidadão ao se relacionar com a administração, não há dúvida da sua indispensabilidade no tocante ao comportamento do administrador público.

E quando impõe obrigações a terceiros, “é fundamental que a administração aja com boa-fé, pondere os diferentes interesses e considere a realidade a que se destina sua atuação”. Para a doutrinadora, é direito subjetivo público de qualquer cidadão um mínimo de segurança no tocante à confiabilidade ético-social das ações dos agentes estatais.

Desistência de ações
A julgar mandado de segurança impetrado por um policial federal (MS 13.948), a Terceira Seção decidiu que a conduta da administração atacada no processo ofendeu os princípios da confiança e da boa-fé objetiva. No caso, o ministro da Justiça exigiu a desistência de todas as ações antes de analisar os pedidos de apostilamento do policial e, posteriormente, indeferiu a pretensão ao fundamento de inexistência de provimento judicial que amparasse a nomeação.

Conforme destacou o ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, a atitude impôs prejuízo irrecuperável ao servidor: “Apesar da incerteza quanto ao resultado dos requerimentos, o pedido de desistência acarretou a extinção dos processos, com resolução do mérito, inclusive da demanda que lhe garantia a nomeação ao cargo, ceifando qualquer possibilidade de o impetrante ter um julgamento favorável, pois a apelação não havia, ainda, sido julgada.”

Em seu voto, o ministro ainda destacou doutrina que invoca como justificativa à proteção da boa-fé na esfera pública a impossibilidade de o estado violar a confiança que a própria presunção de legitimidade dos atos administrativos traz, agindo contra factum proprium.

Verbas a título precário

A Lei 8.112/90 prevê a reposição ao erário do pagamento feito indevidamente ao servidor público. O STJ tem decidido neste sentido, inclusive, quando os valores são pagos aos servidores em decorrência de decisão judicial de característica precária ou não definitiva (REsp 1.263.480).

No julgamento do AREsp 144.877, a Segunda Turma determinou que um servidor público que recebeu valores indevidos, por conta de decisão judicial posteriormente cassada, devolvesse o dinheiro à Fazenda Pública.

Essa regra, contudo, tem sido interpretada pela jurisprudência com alguns temperamentos, principalmente em decorrência de princípios como a boa-fé. Sua aplicação, por vezes, tem impedido que valores que foram pagos indevidamente sejam devolvidos. É o caso, por exemplo, do recebimento de verbas de boa-fé, por servidores públicos, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da administração.

“Objetivamente, a fruição do que foi recebido indevidamente está acobertada pela boa-fé, que, por sua vez, é consequência da legítima confiança de que os valores integravam o patrimônio do beneficiário”, esclareceu o ministro Humberto Martins, no mesmo julgamento."


REFERÊNCIAS: STJ, noticiário 17/03/2013. Processos: REsp 1192678; REsp 1105483; REsp 1073595; Ag 1244022; AREsp 109387; Ag 1378703; REsp 984106; REsp 1141732; HC 143414; HC 206706; HC 137549; MS 13948; REsp 1263480; AREsp 144877

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Princípio da Não Culpabilidade. Informativo nº 619 STF.


A exclusão de candidato regularmente inscrito em concurso público, motivada, unicamente, pelo fato de haver sido instaurado, contra ele, procedimento penal, sem que houvesse, no entanto, condenação criminal transitada em julgado, vulnera, de modo frontal, o postulado constitucional do estado de inocência, inscrito no art. 5º, inciso  LVII, da Lei Fundamental da República.
Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime indigitado como grave, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade.
Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado.
O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (esta última locução tem origem no fascismo italiano, que não se conformava com a ideia de que o acusado fosse, em princípio, inocente).
Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória. ‘Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5°, LVII).
O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc.
É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante. É o efeito irradiante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos (e a domínios) de natureza não criminal. Esse postulado constitucional alcança quaisquer medidas restritivas de direitos, independentemente de seu conteúdo ou do bloco que compõe, se de direitos civis ou de direitos políticos.
 
Referência:
Informativo nº 619 Supremo Tribunal Federal.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A desistência da ação no caso de não ter sido apresentado defesa por parte do Réu e a necessidade de sua concordância.



Desistência da ação é causa de extinção do processo sem resolução do mérito, trazida pelo Artigo 267, inciso VIII, do Código de Processo Civil. Apesar do diploma processualista se referir a “desistência da ação”, na verdade o que há é desistência do processo, sendo que nada impede que o autor proponha novamente a mesma demanda anteriormente desistida.

Desistência é ato unilateral do demandante que, a princípio não necessita de concordância do réu. No entanto, a desistência precisa ser homologada pelo juiz, para que possa produzir seus efeitos, sendo certo que o que o autor pede não é a desistência em si, mas sim a sua homologação em juízo, a teor do que dispõe o Artigo 158, § único do CPC.

Segundo dispõe o Artigo 267, § 4º, do CPC, depois de decorrido o prazo para a resposta o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação.

Realizando uma interpretação literal desse dispositivo poderia se chegar à conclusão de que sempre que transcorrido o prazo para a resposta haveria necessidade de consentimento do réu para que a desistência fosse homologada. Porém, não é exatamente essa a intenção da norma.

Deve-se levar em consideração o fato de que o prazo para a resposta pode se escoar e o réu não tenha apresentado defesa, ou seja, trata-se de réu revel.

O certo é que é o oferecimento da defesa, mesmo que não tenha esgotado o prazo, que serve de base para saber se há necessidade de consentimento do réu, e não o simples escoamento do prazo para resposta, conforme dicção do diploma processualista acima transcrito.

Ainda que o prazo para resposta tenha escoado, “não é necessário contar com a concordância do réu para a desistência da ação, na eventualidade de haver revelia. Apenas se exige a aquiescência do réu quanto à desistência da ação, caso ele tenha efetivamente ajuizado contestação no prazo legal”.

Além do mais, é “desnecessário intimar o réu revel para se pronunciar acerca da desistência da ação, porquanto sua contumácia indica a falta de pretensão em obter uma sentença de improcedência, demonstrando não despontar interesse seu concernente ao recebimento de uma sentença de mérito, sendo-lhe indiferente a análise pelo juiz do pedido formulado pelo autor da petição inicial”.

Trata-se da chamada preclusão lógica: praticado um ato incompatível com o desejo de ver apreciado o mérito, não poderá o réu discordar da desistência da ação no intuito de pretender um julgamento da lide, sendo, portanto, desnecessária a sua intimação.

Insta salientar, ainda, que essa necessidade de consentimento do réu que tenha apresentado defesa decorre do conceito de ação encampado por Liebman e trazido pelo CPC brasileiro e que consiste no direito a uma sentença de mérito.

Se o autor, ao ingressar com uma ação, tem direito de ver uma sentença de mérito, também o réu, ao apresentar uma contestação, terá direito de ver a demanda alcançar a resolução do mérito. O réu que contesta dispõe, de igual forma, do direito de ter uma sentença de mérito à lide. O réu que não contesta, não. Por isso que a necessidade de concordância é somente em relação ao réu que apresentou defesa.

Cabe ressaltar, por fim, que a homologação da desistência só pode ocorrer até a prolação da sentença de mérito. Prolatada a sentença não há possibilidade de se desistir do processo.

 
REFERÊNCIAS:
A Fazenda Pública em Juízo. Leonardo José Carneiro Cunha – 8ª edição.
Curso de Direito Processual Civil. Fredie Didier Júnior. Vol. I. 11ª edição.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Litisconsórcio facultativo impróprio e a sua relação com o litisconsórcio multitudinário.

Litisconsórcio é a reunião de vários autores e/ou vários réus em uma mesma relação jurídica processual. Sempre que houver uma pluralidade de pessoas em um dos polos do processo diz-se que eles são litisconsortes. Pode existir litisconsórcio quando vários autores ingressam com a mesma demanda (litisconsórcio ativo), bem como quando vários réus são indicados pelo autor na petição inicial (litisconsórcio passivo).

O litisconsórcio é necessário quando a presença de todos os litigantes é essencial para a solução da demanda, isto é, sem a presença de todos os autores ou de todos os réus (todos citados) o processo não pode ter uma sentença de mérito válida. A ausência de algum dos litisconsortes necessários implica a extinção do processo sem resolução do mérito.

O oposto do litisconsórcio necessário é o litisconsórcio facultativo. Diz-se que há litisconsórcio facultativo quando, apesar de não haver obrigatoriedade de pluralidade de partes, tal pluralidade deriva de escolha ou vontade de quem propõe a demanda. A ação pode ser proposta por vários autores ou contra vários réus dentro de um mesmo processo ou em processos distintos.

No litisconsórcio facultativo há o exercício de diversos direitos de ação, que poderiam ser oferecidos em processos diferentes para cada litisconsorte. Como exemplo, “A” propõe uma única demanda contra “C”, “D” e “E” (litisconsortes passivos facultativos); todavia “A” poderia escolher propor uma demanda contra “C”, outra demanda contra “D” e outra demanda contra “E”.

Não há, no litisconsórcio facultativo, a obrigatoriedade (a necessariedade) de formação do litisconsórcio.

Quanto ao regramento do litisconsórcio, estabelece o Artigo 46 do Código de Processo Civil:

“Art. 46. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:

I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide;

II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito;

III - entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir;

IV - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito.

Parágrafo único. O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão”.



O inciso I acima trata do litisconsórcio por COMUNHÃO, onde os interesses são comuns (ex.: litisconsórcio dos condôminos, dos credores solidários); os incisos II e III nos revelam o litisconsórcio por CONEXÃO, em que os interesses são distintos, mas estão ligados entre si (ex.: mãe e filho em litisconsórcio contra o pai: o filho quer reconhecimento de paternidade e a mãe ressarcimento das despesas do parto); por fim, o inciso IV nos revela o litisconsórcio por AFINIDADE, onde as pessoas são reunidas em razão de se encontrarem em situações parecidas (ex.: contribuintes de um mesmo tributo; vários consumidores vão a juízo para não pagar taxa de telefonia).

Esse litisconsórcio por afinidade está intimamente relacionado com as chamadas causas repetitivas, isto é, causas de massas em que dezenas, centenas ou até milhares de pessoas encontram-se em uma mesma situação, procurando elas o poder judiciário com o mesmo fundamento de fato e de direito.

No CPC de 1939 o réu poderia recusar o litisconsórcio por afinidade ativo. Isso queria dizer que o réu tinha o direito de não ver-se processado por vários autores em uma mesma relação jurídica processual, quando a hipótese fosse de afinidade. Por isso que se dizia, à época, que o litisconsórcio por afinidade ativo era um litisconsórcio recusável, também chamado de litisconsórcio facultativo impróprio – era direito potestativo do réu recusar o litisconsórcio.

O CPC 1973, em sua redação original, eliminou a possibilidade de recusa do litisconsórcio pelo réu. Todavia, nas décadas de 70 e 80, com o crescente fluxo do sistema econômico, muita gente passou a ingressar no mercado de consumo, gerando, de consequência, problemas de “massa”, de “multidão”. Vários consumidores eram titulares de relações jurídicas em comum (afinidade) e ingressavam conjuntamente em juízo com o objetivo de solucionar os problemas enfrentados.

É aí que surge o chamado LITISCONSÓRCIO MULTITUDINÁRIO, que nada mais é do que um litisconsórcio facultativo com multidão de partes.

Com esse fenômeno, veio o legislador e resgatou a possibilidade de o réu não aceitar esse litisconsórcio, inserindo em 1994 o Parágrafo Único no Artigo 46 acima transcrito, onde o juiz pode limitar o número de litisconsortes facultativos quando a quantidade de autores comprometer a rápida solução dos litígios ou dificultar a defesa.

O juiz pode limitar de ofício, mas o réu também pode formular esse pedido de limitação do litisconsórcio multitudinário facultativo antes de efetuar a defesa. Isso significa que, hoje, litisconsórcio facultativo impróprio é essa possibilidade de o réu recusar a formação desse litisconsórcio multitudinário. Apesar de haver litisconsórcio ativo, este é facultativo e o réu pode recusar ele quando multitudinário: daí ser denominado impróprio.



REFERÊNCIAS:

CÂMARA, Alexandre. Lições de Direito Processual Civil. Vol. I. 18ª edição, 2008, Lumen Juris.
DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Editora Juspodivm, 11ª edição, 2009.
THEODORO JR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Editora Forense, 51ª edição, 2010.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Os institutos da conexão e da continência podem ser reconhecidos de ofício pelo juiz?

Conexão ou continência é o nome que se dá a uma relação de semelhança entre causas distintas que estão tramitando. Se as causas são semelhantes é conveniente que sejam reunidas em um único juízo, para que esse processe e julgue ambas as causas: é uma medida de economia processual (por exemplo as provas serão as mesmas) e também medida para evitar desarmonia nas decisões.

A matéria é regulada pelo Código de Processo Civil, nos Artigos 102 a 106, podendo-se destacar o conceito legal tanto de continência como de conexão, nos Artigos 103 e 104:

Art. 103.  Reputam-se conexas duas ou mais ações, quando Ihes for comum o objeto ou a causa de pedir.

Art. 104.  Dá-se a continência entre duas ou mais ações sempre que há identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abrange o das outras.



O principal efeito da conexão /continência é gerar a reunião dos processos em um único juízo para processamento simultâneo das causas = um juiz perde a competência para julgar a causa e o outro ganha a competência para julgar a outra causa = modificação da competência.

Essa modificação da competência só pode se dar se a competência for relativa – o juiz só pode perder a sua competência relativa. Conexão e continência mudam competência relativa.

Como a incompetência relativa o juiz não pode reconhecer de ofício, mas somente após provocação da parte (por meio de exceção de incompetência), surge a dúvida se a conexão e a continência também seria somente reconhecida pelo juiz após provocação da parte.

Todavia, a conexão e a continência pode sim ser reconhecida de ofício pelo juiz.

A competência retirada de um juízo em razão da conexão ou da continência é atribuída ao outro de forma absoluta = a competência para julgar a causa conexa é absoluta / funcional.

Por conta disso, o juiz pode de ofício conhecer da conexão/continência mesmo sem provocação das partes. Qualquer das partes (autor ou réu) também pode suscitar conexão/continência. Alegar conexão ou continência não é alegar incompetência relativa (a incompetência relativa só o réu pode alegar).

Alegar conexão e continência é dizer que um juiz perdeu uma competência e o outro ganhou uma competência, que é absoluta. Não se deve confundir, assim, alegação de conexão com alegação de incompetência relativa = são regimes diversos.





REFERÊNCIAS:
DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Editora Juspodivm, 11ª edição, 2009.
THEODORO JR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Editora Forense, 51ª edição, 2010.

sábado, 17 de dezembro de 2011

DIFERENÇAS ENTRE “AÇÃO DÚPLICE”, “PEDIDO CONTRAPOSTO” E “RECONVENÇÃO”.

São institutos que se parecem bastante, mas não se confundem.

AÇÕES DÚPLICES: são aquelas ações onde a condição dos litigantes é a mesma, não se podendo falar em autor ou réu, pois ambos assumem concomitantemente as duas posições. Tal simultaneidade decorre da natureza da pretensão deduzida em juízo. É a pretensão levada ao judiciário que revela se a demanda é dúplice ou não.

Como exemplo podemos mencionar as ações possessórias e as ações divisórias, onde NÃO é necessário que o réu formule pedido expresso para si, pois a simples defesa já serve à obtenção do bem da vida. O simples ato de contestar já expressa um pedido contrário. Nessas hipóteses o réu NÃO exerce direito de ação: se o processo for extinto sem julgamento do mérito (carência de ação), NÃO haverá possibilidade de o réu aproveitar os atos processuais praticados para obter provimento favorável a sua pretensão.

Ação dúplice, assim é um tipo de demanda que veicula um tipo de direito que faz com que a contestação do réu seja também uma afirmação de direito dele. Quando um réu contesta uma ação dúplice, ele não simplesmente nega o direito afirmado pelo autor – vai além, afirma um direito dele.

A defesa em uma ação dúplice é, ela mesma, também, um ato de ataque. Ao se defender, o réu está atacando. Com uma única conduta – defesa – o réu também ataca.

Deve-se ressaltar, antes de passar a explicar o pedido contraposto, que há doutrinadores que entendem que uma ação pode ser dúplice tanto em um sentido processual, como em sentido material.

Em sentido material ação dúplice é o explicado acima: na ação dúplice material o réu se defende, só que esta defesa serve como ataque. Outro exemplo, para afastar qualquer dúvida, peguemos uma ação de oferta de alimentos, onde o genitor, na inicial, propõe certa quantia de alimentos. A defesa, por sua vez, vai alegar que aquela quantia é mínima e que o valor dos alimentos deveria ser maior = essa própria defesa já é um ataque.

Em sentido processual, ação dúplice corresponde ao pedido contraposto, que será analisado adiante. Antes, porém, vejamos o conceito de reconvenção.



RECONVENÇÃO: é o exercício do direito de ação por parte do réu, autônomo em relação ao pedido deduzido pelo autor, mas que se aproveita no arcabouço processual por este instaurado. Somente terá lugar se a relação debatida NÃO consistir numa ação dúplice. Deve-se obedecer ao disposto nos Artigos 282, 283 e 315 do Código de Processo Civil. Duas peças devem ser interpostas pelo réu: uma peça é a contestação (defesa) e outra é a reconvenção (ação).

Como se vê, a reconvenção é verdadeiro exercício do direito de ação. Verdadeiro ataque do réu contra o autor, em demanda autônoma – há necessidade de elaboração de peça autônoma. Isto a diferencia das ações dúplices, visto que nestas não há o exercício do direito de ação. Não confundir reconvenção com ação dúplice. Reconvenção é só ataque, não é defesa. No sentido processual de pedido contraposto também não se confunde, embora se pareçam.



PEDIDO CONTRAPOSTO (para alguns corresponde à ação dúplice processual): de acordo com o pedido contraposto, implica-se a formulação de pedido, por parte do réu, na mesma oportunidade de oferecimento de sua defesa, sem a necessidade de utilização do procedimento próprio da via reconvencional. Na própria contestação o réu formula um pedido.

o exercício do direito de AÇÃO, mas NÃO SE EXIGEM as formalidades inerentes à reconvenção. É possível ao réu formular pedido em face do autor no momento de sua defesa, sem a necessidade de elaboração de peça autônoma com os requisitos dos Artigos 282 e 283, mas apenas na hipótese do pedido do réu ter como fundamento os mesmos fatos que já constituem objeto da lide. Eventual carência da ação do autor não impedirá a apreciação do pedido requerido pelo réu (porque é verdadeiro direito de ação).

Pedido contraposto é a ação proposta pelo réu contra o autor no bojo da contestação. As ações nos juizados especiais e no procedimento sumário admitem pedido contraposto porque nelas o réu pode formular pedido contra o autor no bojo da contestação.



REFERÊNCIAS:
DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Editora Juspodivm, 11ª edição, 2009.
DIDIER JR. Fredie. Leituras Complementares de Direito Civil. Editora Juspodivm.
THEODORO JR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Editora Forense, 51ª edição, 2010.